quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Poemas com mar ao fundo

Mar da Rocha (Céu, 2011)



ESTA GENTE

 

Esta gente cujo rosto
...
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo



                                               Sophia de Mello Breyner Andresen,
                                                      
                                              in Obra Poética  (Caminho, 2010)


 
 
     
     
     
     

domingo, 9 de outubro de 2011

Livre

Equilíbrio perfeito   (Céu, 2011)



                                                                                                 À Cristina,
                                                                                                  Que um dia quis ser pássaro

                                                                       Queda
                                                                       Livre



Vai em queda livre.
Não estava preparada para voar.
Para partir.

Há dentro dela uma dor nova.

Mal definida.

Ferida aberta por ter acabado o que

ainda não tinha começado.

Capítulo encerrado

sem nada escrito.

Não sabia como tratar essa ferida,

onde comprar sorrisos e

as palavras que falam.

Envolta em sombras,

ela tem medo.

A partida foi cedo demais.

Ainda não percebe o que se passou.


Rainha sem reino,

amada sem amor.

Não sabe o que fazer da liberdade

que passou a ser sua.

Pânicos agarram-se-lhe ao estômago.

É a liberdade, a grande culpada.

Se fosse corajosa…

Será um dia.

Na distância de tudo, até da alquimia dos corpos.

Na ausência de objecto de choro,

sem razão da perda, grita-se devagar.

Podem ouvir e tirar-lhe o direito de sofrer,

por qualquer coisa que nem chegou a ter.

Sabe que existe e é só!

Vai em queda livre.

Com as asas abertas.

Livre.




Céu

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

"Coisinhas"

Sol de Luz   (Céu, 2010)




      "Nunca estou mais acompanhado do que quando estou sozinho"
                                                                                                                                                
                                                                                           Cícero



- Quem me dera!...
O tom era de desabafo, um suspiro de saudade. Talvez a saudade,
Saudade de um tempo ...

Virei-me para o vulto que caminhava ligeiramente atrás.
Um rosto de pergaminho, sorridente, afável. Olhos azuis de uma mansidão transparente, clara.
Receei falar.
Podia pensar que me estava a intrometer, às vezes as pessoas querem falar sozinhas!

Continuou,
- Todos os dias venho aqui, menina (tão bom quando me tratam assim!).  Eu e a minha irmã.

Num gesto rápido, outro rosto de pergaminho surgiu. Menos "amachucado", mas feito no mesmo molde.
Sorriu tímida e sem falar, anuiu.

- Vimos de Caneças!
E, traquinas, continuou : tomamos o pequeno almoço, passeamos à beira-mar e, depois, voltamos para casa.
Para as nossas "coisinhas".

Desejei ser uma "esponja", para absorver tudo e nada perder daquela lição, daquelas simples palavras...das "coisinhas" pequenas da vida.
Afinal, das que valem a pena. 
Da vida, de nada mais teremos saudades a não ser das pequenas coisas!
E o que será isto de a gente se prender às coisas?
Li algures, a propósito, algo que me ficou na memória e que julgo ser de Alçada Batista, em que ele afirmava que, talvez porque cada uma de nós tem uma história cujos personagens e coisas estão associadas, o que fazia a nossa história não era a história do poder nem a dos heróis mas sim a nossa vida quotidiana.
A esta altura, já havíamos parado e conversávamos como "velhas" conhecidas.
Amena a conversa, em que fui sabendo, entre outras confissões, que ambas eram viúvas e que uma tinha duas filhas a viver no estrangeiro.

- Como vê, menina (doce, outra vez), somos ambas sozinhas.

A irmã do sorriso calmo, concordou.
Aquele sorriso também conversava. Sem palavras.

- Repare que não vivemos juntas. Cada uma tem as suas "coisinhas".

Eu sentia, cada vez mais, ternura pelas "coisinhas" e, cada vez melhor, entendia o que eram.
A irmã do sorriso calmo disse, então, com "palavras de dizer" :

- Com estes passeios, conhecemos pessoas com quem nos apetece falar.
A sua voz era bonita, clara e tranquila, como o sorriso. Os olhos, espertos, piscavam luz.

Disse-lhe que assim também aligeiravam um pouco a solidão.
Suspirou, sorriu de novo e perguntou-me o que era a solidão.

- Falam tanto em solidão!... O que é a solidão? Nunca a senti, não sei o que é!
- O que é a solidão? repetiu.

Calei. Estonteei.
Não sabia dizer-lhe.
Ainda não sei o que dizer.
Apesar de tantos conceitos, notas, explicações e dissertações sobre a solidão, ainda não tenho resposta para aquela pergunta, para aquele sorriso!
Agustina Bessa-Luis na sua obra "Dicionário Imperfeito" escreve que a "solidão é necessária ao convívio" e que "há uma parte da solidão que não podemos compor".
Ainda bem, porque é na solidão que assenta a diferença.

E esta não é, seguramente, uma "coisinha" pequena!

Céu