terça-feira, 29 de março de 2011

Eufemismos

Fontes de Vida

(Céu, Março de 2010)




"Em cada palavra um grito,
Em cada grito a Vida,
Esse é o estrume"

José Gomes Ferreira, Poeta




Há muito tempo que tenho vontade de escrever sobre a minha experiência com o cancro.
Sem eufemismos...
Depois, como sempre, sinto pudor.
Tenho, ainda, receio de chocar.
Receio que transpareça a minha fragilidade e/ou força.
Medo de ficar vulnerável.
Tenho, sempre tive, cuidado, para evitar sentimentos de piedade, de que não gosto e não são, aliás, para aqui chamados.
O meu objectivo não é, nunca foi, a publicidade da doença, mas sim a apologia da vida.
Ou seja, não quero ter de mim saudades de ser saudável, antes fazer diariamente a aprendizagem de um novo caminho.
Tem sido esse um dos meus lemas nos últimos 17 anos.
É difícil, mas não devo ceder terreno, não devo fazer concessões.
Por vezes, é mais cómodo utilizar eufemismos, mas o cancro é para olhar de frente, numa autêntica "pega de caras", para a qual, não nego, é preciso ter Fé.
Acredito que as vivências podem resultar quando são partilhadas.
De que serve ter estórias para contar, se não as dividimos?
Assim, pouco a pouco, vou deixando neste espaço o meu testemunho, com emotividade, mas sem romancear, com verdade mas sem auto-comiseração, lembrando sempre que a linha que separa uma da outra é muito ténue.
Não vale a pena imaginar que a vida é cor-de-rosa ou só a preto e branco.
O que vale a pena é lutar, ter esperança, e, acima de tudo, viver sem amargura.
Com deslumbramento.
Viver um dia de cada vez!


Céu





" Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo (...) "

                            Álvaro de Campos, Tabacaria, 15-1-1928





sábado, 19 de março de 2011

Ao meu Pai





Pai, a Minha Sombra és Tu
a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu

 


Jorge Reis-Sá,  "A Palavra no Cimo das Águas"







sexta-feira, 18 de março de 2011

Poemas com mar ao fundo

Zambujeira do Mar, 2010 (MC)





HERANÇA



É a minha herança: o sorriso,
o azul de uma pedra branca.
Posso juntar-lhe, ao acaso da memória,
um ramo de madressilva inclinado
para as abelhas que metodicamente fazem
do outono o lugar preferido do verão,
um melro que deixou o jardim público
para fazer ninho num poema meu,
um barco chamado Cavalinho na Chuva
à espera de reparação no molhe da Foz.
Deve haver mais alguma coisa,
não serei tão pobre, cometemos sempre
a injustiça de não referir, por pudor,
coisas mais íntimas: um verso de Safo
traduzido por Quasimodo, a mão
que por instantes nos pousou no joelho
e logo voou para muito longe,
as cadências do coração
teimoso em repetir que não envelheceu.


Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, Setembro de 2001
              





quinta-feira, 17 de março de 2011

Há dias assim!

Pontão da Costa Caparica, 2011 (MC)



"Eu sou do tamanho do que vejo e não
do tamanho da minha altura"
Alberto Caeiro



Caminhava hoje, como tantas vezes o faço, no pontão da Costa de Caparica.
Faz-me bem.
O mar é sempre diferente, e, por isso, estimulante.
Como a vida não é de sentido único, há sempre o prazer e o sofrimento.
Foi isso que me aconteceu,  ao aperceber-me que caminhava, quase ao meu lado, um jovem em cadeira de rodas.
Tão jovem que era!
Durante um bom período, caminhámos mais ou menos a par.
Até que, numa ligeira subida, ele ficou para trás.
Eu também quis ficar...
A realidade daquele jovem atingiu-me profundamente.
E transformou o meu dia.
Quiçá, os meus dias.
Dei por mim a pensar que, onde quer que esteja, o que quer que veja ou faça, aprendo sempre.
Isso é transformação!
Há sempre situações piores do que a nossa.
Basta olhar.
Ver.
Sentir!
E neste turbilhão de sentimentos, veio à minha mente as palavras de José Saramago: "(...) e à utopia chame-se-lhe raiva, no desejo e na alegria de transformar as coisas que estão mal".


MC

quarta-feira, 9 de março de 2011

Aos Homens Inteligentes

Há homens que são muito inteligentes!

                                                  (É para eles que dirijo este texto)

Percebem que a mulher não precisa de conquistar o poder.
Ela já tem o poder.
Ela tem vários poderes!
Desde logo, o da maternidade.
A capacidade de gerir vários problemas em simultâneo.
O poder, dizem, de influenciar as carreiras políticas e os cargos de Estado.
O poder de sedução.
...
(Interessa-me, neste texto,  os poderes fácticos e não os poderes formais)

Como também não pretendo desenvolver o tema dos desvios comportamentais que colocaram a mulher, ao longo de séculos, numa posição de humilhação e subalternidade.
De discriminação estúpida  e sob violência bruta.
Gratuita.
Física e psicológica, esta a mais dolorosa.

Vou, outrossim, enaltecer e comover-me com as grandes histórias de amor.
Amor Velho, Antigo, mas que nunca passa de moda.
Amor Novo, " à moda antiga" !
Amor Amado.

Do Amor de Mãe, de Filha, de Irmã.
De Mulher.

Da mulher que é sagaz, mas pueril,
inteligente, mas "naif",
generosa, mas egoísta,
amorosa, mas frontal,
vaidosa, mas despojada,
romântica, mas pragmática,
sensual, mas espiritual,
perfeita, mas imperfeita.
...
Tantas emoções, tantas contradições!
Como a Natureza, afinal.

Há homens muito inteligentes!
Que sabem (eles sabem) entender "este mundo", "este todo".
Não pretendem mudá-lo.

Querem-no assim.

Amam-Na assim.

Há Homens que são muito inteligentes!



Poema de amor
de António e Cleópatra

Pelas tuas mãos medi o mundo
e na balança pura dos teus ombros
pesei o ouro do sol e a palidez da lua.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
( No Tempo Dividido, 1954)

quarta-feira, 2 de março de 2011

Luz de Lisboa

Foto a partir de telemóvel, MC, 2011

"A ponte é uma passagem para a outra margem"

 (Canção dos Jafumega)



Sempre que posso, viajo de autocarro para Lisboa.
Não são autocarros de luxo, nem sequer de primeira categoria.
Por vezes, parecem-me verdadeiros "machibombos".
Viajar neles, é sempre uma aventura.
Literalmente.
Mas não troco estas viagens pelo conforto do meu carro.
O ponto de observação é privilegiado.
Os olhos, as mãos, o coração e o pensamento estão livres.
Livres para o encantamento.
Atravessar a ponte, é sempre uma descoberta.
Descoberta de Lisboa.
( Mas também descoberta de histórias do quotidiano das pessoas, que sempre me maravilham e que tenho por "vício" observar - a seu tempo contarei algumas delas).
Hoje, senti necessidade de falar da minha cidade, da nossa cidade.
Da cidade com luz.
Sempre.
(Como alguém disse: se Paris é a cidade-luz, Lisboa é a cidade com luz)
Mesmo nos dias mais escuros e mais nublados, há sempre um raio de luz sobre uma colina, sobre um recanto de Lisboa.
Que nos aquece e nos revigora.
Quem vem de Sul para Norte e atravessa o rio, tem este encantamento de olhar e ver esta luz, que nos atravessa o coração.
Que nos prende a alma.
Olho para Lisboa sempre como se fosse a primeira vez!

MC



"Das correntes do Oceano com seu manto de açafrão
surgiu a Aurora, para trazer a luz aos deuses e aos homens."

( Homero, Ilíada, Canto XIX )



Foto a partir de telemóvel, MC, 2011